segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Whatever!...


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Não vou dizer que tenho grandes expectativas para 2008.
Fico contente, porque outros as têm, ou têm esperança de as vir a ter... e porque a alegria dos outros me contenta.
Pena é, que não tenha o imenso poder de me contagiar, no sentido virótico do termo. [É que ando mais resistente do que pensava aos agentes externos... Consegui não me constipar durante o último quadrimestre. Se estive doente, na última semana de trabalho, foi porque fiz asneira e andei ao frio, pelas ruas da Póvoa. Foi uma coisa bacteriana e que passou, depois de tratada, durante os primeiros dias de repouso.]
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Para 2008? Whatever and whenever... [assim, um pouco como tiro partido de manchas, aparentemente aleatórias, quando resolvo dedicar-me ao desenho, tão raramente. Os resultados são o que são, isto é, meros exercícios de concentração. Nunca me sinto relaxada quando desenho, quando escrevo, quando penso. A minha actividade neuronal é alimentada com adrenalina e dores nas cervicais... Nirvana não é para mim, apesar de anos de Yoga, para aprender a respirar].
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A depressão colectiva, apesar de Um Ar De cinismo, claro que me afecta, mais profundamente do que seria saudável.
Não vou negar que me preocupa, irrita e revolta, apesar de mudar de canal na hora dos noticiários e não ouvir rádio no carro, por princípio. [Mas é inegável o poder da comunicação, que chega por outras vias, sempre!... Até mais depurada, muitas vezes, em formato de Decreto-Lei ou Decreto Regulamentar!].
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Sei que vou começar o mês de Janeiro a fazer madrugadas, não por me deitar tarde [um dos pequenos prazeres que me tem sido interditado e, quando não me porto bem, sofro na pele as duras consequências de uma semana a cair de cansaço], mas para me levantar cedo, o que me deprime a priori.
Deveria pensar nos prazeres de ver nascer o sol durante as viagens matinais... e de usufruir do inverso, no caminho de volta? Serei menina para isso? Acho que não... mas who knows?
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Espero ter disposição para dedicar a esta actividade e para visitar os meus blogs preferidos. Não dou este tempo por mal gasto ou o julgo uma mera distracção. [Também me faz doer as cervicais...].
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Já sei que não vou ter tempo, nem vontade, para actividades saudáveis, do tipo jogging, hidroginástica e afins... Por isso, nem vou alimentar ilusões.
Enfim! Como diria a minha avó, se pudesse dizer-me alguma coisa, aqui e agora, estou naquela idade aborrecida para as mulheres, isto é, velha demais para ter filhos [e podia ter tido mais, já que voltei a insistir noutro casamento] e nova demais para ter netos...
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Li em qualquer lado que, quando o simples facto de uma agulha cair ao chão, gera a maior das irritações, então, estamos a precisar de abrandar o ritmo, parar, fazer um tratamento, até!... Vou evitar agulhas por perto, de todas as espécies e feitios, por via das dúvidas!
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Para quem é jovem, para ter filhos, um Bom Ano!
Para quem já não é tão jovem e pode ter netos, um Bom Ano!
Ora, acho que a minha avó diria que, para os outros também!...
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Subscrevo.
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quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Requiem para um amigo que não chegou ao natal...




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Foi colhido pelo comboio de Aveiro, na véspera de natal, num apeadeiro de Valadares.
Ao que parece, tinha ido tratar de uns assuntos [os do costume, receber o dinheiro das telas já vendidas, mas não pagas, assuntos de que os artistas, agora, também têm que tratar, para além de criar...].
Já atrasado, suponho, cada vez mais míope... Não sei.
Sei que será cremado o corpo (ou o que resta dele) do nosso amigo e pintor Miguel D'Alte, amanhã, no cemitério do Prado Repouso.
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Finalmente, como o bom artista é o artista morto, pelo menos no nosso país, não terá mais problemas em ver os seus quadros vendidos...
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Curiosamente, o Miguel era um pintor meticuloso e cerebral, com que eu gostava de comentar as obras e brincar com a frivolidade das artes em portugal.
Mas, na cerâmica (nos workshops organizados pelo meu marido e que eu presenciei), a sua relação com os materiais era quase oposta.
Ofereceu-nos esta pequena escultura que eu sempre associei à pessoa que ele era, para mim [alguém que precisava de elevar a cabeça com as próprias mãos para (sobre)viver neste mundo, assim, como quem arregaça as baínhas das calças para não as molhar nos charcos sujos...]. Está e estará a guardar a porta do quarto do meu filho, numa expressão simbólica, que sempre teve.
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Já não temos Miguel. Mais uma vez, "tão cedo passa tudo quanto passa". [Ricardo Reis]
Ficará a obra... Porque a tem, espalhada por quem a aprecia e por quem nem sabe o que tem.
Vou lembrar-me dele, inevitavelmente. Vamos! Aqueles que gostavam do Miguel, ainda que por razões diferentes.
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Eu despeço-me do Miguel, que podia sujar-se nas tintas e nos pincéis, mas que se indignava com os charcos sujos desta vida. [- Eu só sei pintar, não sei fazer mais nada. - Parece que não chegava... não chegava, mesmo. É triste viver num país que não acarinha os artistas, quando eles o são, isto é, bons!]
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quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

A minha Árvore de Natal...

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A minha Árvore de Natal não está aqui em casa.
Há vários dias que queria eternizá-la numa imagem digital.
Hoje, à espera da hora marcada para a reunião com os Encarregados de Educação da minha direcção de turma, quase sem luz do dia, consegui fotografá-la.
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É a altura do ano em que este jardim interior é mais bonito. As mãos dos funcionários e a sua mestria em jardinagem fazem destas coisas!... Um grupo de alunos [provavelmente a cumprir "pena" com serviço cívico, em vez de suspensão] ajudava a varrer os galhos e as folhas secas.
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E brincavam, também... Chamaram-me para ver o coração acabado de gravar no tronco de outra árvore.
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Chamei-lhe Tronco de Árvore com o coração de um aluno!...
Este coração gravado de fresco ficará, para sempre, neste tronco.
Tudo pareceu eterno, de repente. Vivo...
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Procurei outros recantos [que fazem companhia à minha Árvore de Natal, que não está aqui em casa], antes que a luz desaparecesse e começasse a chover a sério. Chuviscava.
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E encontrei um dos meus preferidos, que contemplo das janelas da cantina, quando almoço na Escola.
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Parece que coisas importantes na minha vida não estão em minha casa.
Isso deve ter algum significado a desvendar.
E, isso terei que admitir, apesar dos muitos pesares.
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[Nota: Esta semana as salas de toda a Escola estavam gélidas. Era tão óbvio... Faltava o calor e o movimento dos mais de mil alunos que já entraram em férias escolares!]
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domingo, 16 de dezembro de 2007

Natal e Pietá...


.Inevitavelmente, estava a pensar no natal.
Como em todos os natais lembrei-me da mãe de Cristo e do meu encontro com a Pietá de Michelangelo, na primeira capela da alameda do lado direito, na Basílica de S. Pedro.
.E, apesar de ter anunciado um intervalo, não resisti a reviver as circunstâncias bizarras em que a vi, quando não devia ter visto, mas vi….
[É preciso antecipar que tenho uma tendência estranha para visitar obra museológica e monumental quando decorrem manobras de manutenção. Foi assim com a catedral/mesquita em Córdova… que não vi! Foi assim com o museu da Acrópole em Atenas… que não vi… Foi assim com muitos outros itens afins… que não vi! E não posso dizer que tenha viajado em época baixa, infelizmente. Sofri quase sempre as agruras de Agostos quentes e abafados e o pulular de turistas, como eu!]
Quando entrei, há muitos anos, na Basílica de S. Pedro, não era a proximidade papal que procurava, com toda a certeza, nem outras iguarias monumentais. Era mesmo a escultura da Pietá. Imaginava-a como sempre imaginei o que nunca encontrei – enorme e imponente!.Pois bem a procurei, sem saber onde a encontrar. De facto, reparei nuns imensos panos brancos, à entrada, do lado direito, mas avancei, certamente, convicta de que não iriam pôr tal escultura quase atrás da portada principal e muito menos que aqueles imensos lençóis escondiam o que eu queria ver. [Começou aí o meu Karma com as obras de manutenção em monumentos…]
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Andei perdida pela vastidão da Basílica, sem achar grande interesse em nada mais… Talvez porque não estava a encontrar o que queria? Talvez porque as pessoas me distraíam e me faziam lembrar o episódio dos vendilhões do templo [que a minha mãe contava quando era minha professora, no tempo dedicado à religião e moral, que era obrigatória… e me fazia desejar que aparecesse o verdadeiro senhor do sítio e os pusesse a correr dali para fora!...]?
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Já as minhas parceiras de viagem estavam de saída, prontas a papar mais uma visita, quando me lembrei de perguntar, na entrada, agora saída, num italiano aprendido naqueles poucos dias – mas, afinal? Onde está a Pietá de Michelangelo? O guardião do templo respondeu de forma antipática e peremptória que não podia ser vista. Estava em obras de manutenção, por detrás dos panos brancos..Não saí.
Dei meia volta.
Enfiei-me por entre os panos.
Escolhi mal a entrada.
Enredei-me e fiquei presa.
Consegui soltar-me, afogueada e claustrofóbica..Quando olhei, finalmente, estava em frente à Pietá!…
À volta, homens e mulheres de bata branca andavam de cá para lá com instrumentos que não percebi o que eram. Outros estavam sobre a escultura, do lado direito.
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Viram-me, certamente, como eu os vi. Não disseram nada. Não soube porquê. [Ou percebi, mais tarde...] Desviaram-se da escultura, suponho que para me deixarem sozinha naquele momento único de contemplação estética. [Com o passar do tempo tentei imaginar a minha descompostura, despenteada e de olhos esbugalhados, depois de lutar com tantos panos e nem sei como não os assustei… Em vez disso… não me denunciaram e partilharam o que estava escondido.]
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A Pietá era muito mais pequena do que eu a imaginava. No entanto, pouco importou a dimensão. Pouco importou o mármore branco, que deveria tornar gélidas as duas figuras.
Senti os olhos cheios de água perante a ternura da figura maternal, tão jovem e tão impotente, com um filho morto a escorrer-lhe do colo, sem esperança.
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De repente, apercebi-me da gentileza daquele grupo e que deveriam ser restauradores de obras de arte. Limpei os olhos com as costas da mão. Agradeci em italiano e deixei-me conduzir à saída e/ou entrada certa, por entre os panos..Apanhei um correctivo do guardião do templo, que vociferava palavras que não anunciavam nada de bom para mim. [Afinal, fui eu a escorraçada, não os vendilhões.]
Corri pela escadaria com o coração aos saltos, sem saber bem a razão. Roubei a Pietá? Acho que não. Mas vi-a na sua forma mais pura, destronada do púlpito, rodeada de panos brancos e sem altar!.Penso que foi a minha primeira experiência de contemplação estética. [Que nada teve a ver com o facto de a Pietá poder ser catalogada como Arte Sacra. Bem pelo contrário… com um material tão frio o autor conseguiu transmitir-me um sentimento tão humano e tão carnal – a dor maior – a morte de um filho.]
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Até hoje, continuo a admirar o gesto dos que me deixaram ficar…
Até hoje, uma obra de arte só o é, se me fizer suspender a respiração… e melhor é, se me fizer sentir um nó na garganta e um brilho húmido no olhar… se me fizer lembrar os homens e mulheres de bata branca que se afastaram para me deixar olhar!
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Michelangelo tinha pouco mais do que a minha idade [naquele tempo em que a roubei], quando aceitou a encomenda e a esculpiu, 23 anos, creio.
.Nascimento e morte… natal e pietá! ...
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domingo, 9 de dezembro de 2007

Intervalando...


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Vou entrar numa espécie de quarentena.
Será a última semana de aulas [onde já aulas não são...], mais a seguinte, com reuniões e auto-avaliações e toneladas de papelada e verificações e conferências de mais papelada e preparação de fichas e cronogramas e afins...
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Lá para dia 24, acho que conseguirei desligar-me de tanta azáfama e espero não me esquecer de nada. Pois, por muito pouco relevante que considere todo este trabalho insano, é o que eu faço... [Julgava que me tinha libertado da burocracia e do papel/formulário... mas, como me enganei!]
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Já estou a roubar tempo ao tempo de me pôr a "preencher", por isso, suponho que este post será uma despedida até depois do natal. [Que também é uma época de marasmo gastronómico para mim e de uma trabalheira doida para quem vai ter que cozinhar todas aquelas iguarias que me são indiferentes.]
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É nestas alturas que a minha vida me parece muito insignificante. É a escadaria pequenina e deslavada com que começa este até breve.
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P.S.: E um bom Natal para os meus amigos e para os amigos do Natal.
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Foto retirada da net e modificada

sábado, 10 de novembro de 2007

Aos meus irmãos e à nossa infância



A velha e o ladrão.Era uma vez uma velha que vivia sozinha, numa casa um pouco afastada do povoado.
Numa noite escura como breu, onde não se via um palmo à frente do nariz, a velha desceu as escadas de pedra, geladas pela aragem fria da noite, com o balde da comida para os porcos. Olhou à volta e pensou alto:
- Bela noite para ladrões.
De repente, saltou-lhe à frente um estranho vulto negro.
- À porta os tens, velha!
A pobre senhora tremeu dos pés à cabeça. Por pouco, não deixava cair ao chão o balde da lavagem. Todavia, habituada à solidão e aos perigos que esta acarreta, encheu-se de coragem e tentou pensar, rapidamente, no que poderia fazer para dar a volta à situação.
- Ora, meu caro senhor – Disse muito serena pousando o balde – qual ladrão, qual carapuça. O senhor é um pobre desgraçado que se perdeu nesta noite escura e sem luar e teve a sorte de vir parar à minha humilde casa, onde lhe vou preparar um belo jantar. Estou para aqui tão sozinha, que me vai saber muito bem a sua companhia.
O ladrão ficou meio atrapalhado, não sabia bem o que fazer – se saltar para cima da velha e pô-la a dormir com um safanão, ou esperar que ela entrasse para lhe roubar os parcos bens. Pensou um pouco e achou que ficaria a lucrar se primeiro jantasse e depois a roubasse. Vendo bem, já há uns dias que não comia uma refeição caseira e, se ela fazia questão, porque não aproveitar.
Lá subiram os velhos degraus de pedra, como se de dois amigos se tratasse e entraram na casa humilde que cheirava a enchidos e a compota de maçã com canela.
A velha mandou-o sentar, observando-o de esguelha e pensando como poderia livrar-se daquele homem que não podia ter um ar mais malvado do que aquele que tinha: sujo, mal barbeado, olhos de cão raivoso, cabelo negro desgrenhado, unhas pretas e compridas, quais garras prontas a atacar. Mas a velha já tinha vivido muito, passara por grandes privações, era uma mulher obstinada e, definitivamente, não lhe estava a apetecer morrer naquele dia.
Ofereceu-lhe sopa de couves, cheirosa e quente, sardinhas acabadas de fritar em ovo e farinha, sobre fatias de broa fresca, bem regadas com o vinho mais forte que conseguiu ir buscar à adega, com os olhos pequenos e desconfiados do ladrão a seguirem-lhe todos os passos.
Mas fez de conta que não reparava e tratou de nunca lhe deixar o copo vazio.
Já bem bebido e comido, a velha resolveu começar a executar a segunda parte do seu plano.
- Ó meu pobre senhor, o que a vida lhe tem feito! Magro como um cão, sem lar, sem família… deve sofrer muito…
O homem, bem satisfeito, já descontraído e mais sossegado, porque a velha, para além de nem suspeitar das suas intenções, ainda lhe dava tempo para descansar de tão apetitosa refeição, foi acenando, que sim, com a cabeça e encostou-se na cadeira.
- Olhe – continuou ela – quem sofreu e sofreu muito, foi o meu pobre pai. Lembro-me como se fosse hoje. Em novo, era um touro de saúde e vigor. Não havia pedra que não conseguisse levantar… não havia potro que não conseguisse domar… e dava-nos cada sova que nos deixava sem sentidos. Mas a justiça de Deus não tarda. Um dia, vá de ficar entrevado numa cama, à conta de uma ferida que nunca mais sarou.
O ladrão estava encantado. Já não se lembrava de lhe contarem histórias desde o tempo em que a sua mãe era viva. E há quanto tempo isso acontecera. Deixou-se ficar mais um pouco e recostou-se ainda mais na cadeira. Estava a sentir uma sonolência agradável e reparadora. Mas a velha continuou:
- Sofreu muito o meu falecido pai. Desde essa altura, nunca mais teve sossego. E quando lhe fazíamos os curativos? Berrava que nem um doido. Vou-lhe contar como era – e, de repente, a velha abriu a boca e desatou a gritar com quantas forças tinha – Aqui d’ El Rei que me estão a matar! Socorro que me matam! Aqui del’Rei que me matam!
O ladrão, que até ali, estava embevecido com o simpático e inesperado serão, deu um salto na cadeira.
- Cale-se mulher! A aldeia não é assim tão longe e hão-de pensar que alguém a quer matar a si!
A velha, cujo objectivo parecia estar prestes a ser desmacarado, retorquiu com um sorriso muito calmo:
- Esteja descansado, meu caro senhor, na aldeia todos conhecem a história do meu pobre pai. Já estão habituados a ouvir-me contá-la a quem me visita. Não vão ficar nada admirados. Não seria a um salteador ou malfeitor que eu me poria a contá-la num serão. Mas, como eu ia a dizer, o meu pai sofreu demais. Apesar de ter sido duro com os filhos, a mulher e toda a gente, não merecia tal agonia.
E a velha continuou em altos berros a descrever o sofrimento do pai, cada vez mais alto e com mais realismo. Por seu lado, o ladrão não se sentia nada descansado e não ficou surpreendido quando se ouviu bater à porta um vizinho preocupado.
- Ó tia Joaquina, a senhora está bem?
- Não se preocupe – disse a velha ao ladrão, tentando disfarçar o nervosismo – Eu já lá vou explicar-lhes que tenho uma visita em casa e estou a contar a história do meu pobre pai.
O ladrão ficou de atalaia, sem deixar de a vigiar, com a mão na faca que tinha presa na liga, não fosse dar-se o caso de precisar.
A velha abriu a porta, piscou o olho ao vizinho e disse, com o ar mais tranquilo do mundo:
- És tu, ó Ramiro. É que estou com uma visita, um santo homem, que não conhecia a história da morte do meu pobre pai. Sabes? Aquela agonia horrível que acordava toda a aldeia…
É claro que a velha tinha inventado a história do pai, a chaga que nunca se curou e os gritos de loucura. O pai da velha tinha morrido, era ela uma criança, depois de uma noite de bebedeira em que escorregou de uma ravina e partiu o pescoço. Todos se lembravam muito bem disso. Na manhã seguinte, homens, mulheres e crianças percorreram o caminho de volta a casa à procura do seu rastro, quando deram com ele no fundo do penhasco.
O tio Ramiro percebeu tudo. Rapidamente, assomou à entrada da porta e cumprimentou o intruso, cordialmente.
- Então vá, tia Joaquina, continue lá com as suas memórias e uma santa noite para os dois.
Lá saiu, pondo o chapéu na cabeça.
O ladrão tirou a mão da faca, mais descansado, ainda um pouco nervoso, mas dispôs-se a continuar a ouvir a velha que já lhe servia mais vinho, como se nada fosse.
- Bons vizinhos que eu tenho. Pena que não estejam mais perto. Percebe agora porque me dá tanta alegria tê-lo aqui e poder contar-lhe estas histórias do meu passado de velha cansada…
Lá continuou a descrever a doença do pai… como um homem forte e arrogante acabou um fraco cheio de dores e sofrimento.
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Não passaram mais de dez minutos, quando todos os homens da aldeia, armados de varapaus e enxadas irromperam de surpresa pela porta da frente e das traseiras e imobilizaram o ladrão. Tão surpreendido ficou que pouco ou nada se debateu.
- O raio da velha! – Dizia ele – O raio da velha!
Finalmente, a tia Joaquina sentou-se numa cadeira e sentiu os joelhos a tremer e o coração a bater no pescoço.
- Então? – Disse o tio Ramiro – Não é agora que se vai abaixo, depois de ter sido tão corajosa. Aquela do seu falecido pai não lembra ao diabo! C’um raio. Vossemecê, é danada!
Enquanto levavam o ladrão bem preso, todos se riam e admiravam a coragem da velha.
A tia Joaquina rezava um pai nosso e bebia o resto do vinho forte que servira ao ladrão.
- Acho que estou a precisar! – Pensou em voz alta.
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Adaptado por Um Ar De, a partir de um Conto Popular, contado pela nossa mãe
Silvares, Fundão

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 Foto retirada da net
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quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Crepúsculos...



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Os breves minutos crepusculares também são dos meus favoritos.
Porque se anuncia a noite, sem ser?
E se acendem as luzes,
de repente?
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São pequenos prazeres da semi-obscuridade.
São artifícios de luz
na membrana, ainda límpida, das cores nocturnas.
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Assisto à morte de um dia sem ter que morrer?
Um dia que passa sem ainda ser passado?
Um pequeno futuro até ao próximo - crepúsculo - claro!
[a caminhar para o escuro]
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É! Também são os meus momentos especiais.
Que são tão poucos, afinal...
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quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Noite, madrugada e aurora


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Tenho saudades de me deitar bem tarde... sem ter de me levantar bem cedo, ao toque irritante de um despertador.
Faz-me falta a noite. Vejo melhor com luz artificial. Penso melhor com o silêncio da vizinhança.
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Desde pequena que dormir era morrer.
Prolongar a noite era enganar a morte.
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Já não penso assim. Mas continuo a precisar dos serões que entram pelo friozinho da madrugada.
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sábado, 20 de outubro de 2007

Maldições do nosso tempo





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Quando cheguei ao Porto, a refinaria de Leixões estava no seu auge de produtividade e poluição.

Da última parte ninguém falava.

Fala-se, agora, quando o cenário é de um filme apocalíptico de uma ficção científica não muito longíncua, postecipada para os confins de um Séc. XXI, na altura, tão distante...



Mas até o meu pai dobrou o ano 2000!... Por pouco, mas conseguiu.

Também ele conviveu com a crescente decrepitude da refinaria de Leixões.
[Saudades da simplicidade do meu pai... que viu o mundo passar por ele, sem nele querer interferir mais do que o necessário, para eu poder dizer que, num heróico low profile, chegou ao Séc. XXI!]
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Convivem com este monstro de engenharia arquitectónica [ou vice-versa] pequenos campos de milho, cuidadosamente cuidados por gente de Perafita e arredores.
Os animais pastam nas pequenas leiras em pousio. Os proprietários de uma agricultura de subsistência [que o Estado teima em não querer admitir que existe e insiste em sobreviver] colhem o milho e as batatas, paredes meias com as torres desbotadas da refinaria.
Separam-nos redes de arame verde escuro, para não destoar com a cor do milho.
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Passo pela praia da Boa Nova e tenho, desde sempre, a visão destes anacronismos:
A antiga Casa de Chá, projectada pelo arquitecto Siza Vieira, cada vez mais na moda!...
Ali perto, nos rochedos, por vezes batidos pelas ondas, existe a placa com o poema de António Nobre, o poeta da praia da minha infância, aqui no Porto - Leça da Palmeira - também ela, a praia dos poemas de antanho, do livro "Só", fora de moda no seu próprio tempo...
Estes dois ícones estão bem em frente ao mar...
Depois, a imponência ignorada da Refinaria, do outro lado da estrada, com os torreões de ficção científica. Deles saiem chamas que lembram bocas redondas de dragões mitológicos. E fumos brancos, ou com várias tonalidades de cinzento, que correm pela troposfera, conforme as inclinações e a intensidade das nortadas ou do vento de nordeste.
O nevoeiro, tão frequente, torna os fumos baixos e rasantes. Tingem-se, multicolores, com a proximidade da hora crepuscular. E sempre, sempre, o cheiro pestilento. Mas as praias repletas de gente, ignorando o vento, ignorando o frio e a fumarada que existe. Porque não existe só na minha memória, de há mais de 40 anos.
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Todavia, não consigo deixar de acrescentar que estas imagens me fascinam. Se puder, este é o itinerário que escolho para vir para casa, sempre que viajo de mais ao norte [invariavelmente, ao sabor da nortada, aquele vento que enlouquece, ainda mais, os que já são loucos, como dizia a minha avó...].
E que não me canso de olhar estes torreões, as labaredas e as luzes acesas, aqui e ali, ao final do dia, quando começa a escurecer. Então dou comigo a pensar - há lá gente a trabalhar... ainda há lá gente... - talvez, à procura de um sentido patético para a existência de tal dinossáurio na (des)graça do ano de 2007.
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terça-feira, 16 de outubro de 2007

Espuma triste de tardes poluídas à beira-mar



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Tenho passado horas sozinha, quando estou em casa. Compromissos meus que me obrigam a ficar. Compromissos dos meus, que os obrigam a sair. Esta solidão e silêncio contrastam com o barulho das horas que passo na escola. [Barulho inevitável, outro prescindível, outro desgastante.]
Como esta espuma, ao longe, parece outra coisa. Bem perto e bem observado, não passa de poluição.
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Nestes últimos tempos, que foram de mudança, tenho pensado se não seria, ainda, o tempo para fazer mudanças maiores e partir para sítios [se é que existem], onde a espuma do mar ainda é branca e lembra o que é - espuma do mar!... e onde a agitação das pessoas ainda seja o que parece anunciar - a vontade imensa de comunicar e de dizer palavras cheias!
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Apesar de ser meu costume pensar que nunca é tarde... apesar de ter sempre achado que não devemos ser escravos da nossa própria biografia... apesar de ter mudado tantas vezes, sem olhar para trás... Apesar de tudo isto, desta vez, pergunto-me se não será demasiado tarde, para inflectir ou deflectir os percursos.
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E penso, ainda, que talvez não devêssemos trair os nossos sonhos de infância, para ficar com um punhado de espuma amarela nas mãos engorduradas pela poluição dos tempos.
Deveria ter sido freira missionária... para ir para África, inspirada nas revistas dos meus tios padres (do lado do meu pai), de Portugal de Além Mar. [Tão criança, que não percebia a ligação de tal vocação com o catolicismo banalizado, no quotidiano das quinzenas dos setembros, passados na Beira Interior.]
Deveria ter sido jornalista repórter, ou enfermeira paraquedista... para ir para África, inspirada nas primeiras grandes reportagens dos primórdios da televisão, em Portugal. [Sem perceber que iria enfiar o nariz numa guerra colonial que acabou, quando eu teria a idade para tomar alguma decisão nesse sentido... ]
Deveria ter ido para Lisboa tirar um curso superior em Antropologia... para ir para África, mas o Porto foi o sítio que escolheram para tirarmos cursos superiores!...
Deveria ter ido para África. Ponto final.
E não sei porque razão houve esta fixação por África. Nunca lá fui. Não tenho lá família [os poucos que tinha regressaram e nunca contaram as histórias da África do desejo da minha infância], nem amigos.
Agora é tarde.
É tarde para mim....
[Talvez nem sobrevivesse à primeira semana, com tanta vacina que teria que tomar e vomitar...]
É tarde para África...
[E isto é mais importante que o meu desejo adiado. Talvez não sobrevivam à espera das vacinas e dos dias de muitos amanhãs sem esperança.]
Se chorasse, por não ter desejado o suficiente, em vez de lágrimas, dos meus olhos talvez brotasse esta espuma triste de tardes poluídas à beira-mar.
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sábado, 6 de outubro de 2007

Pois, se somos feitos de pó das estrelas...


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Ontem, a minha cabeça voltou a sentir-se assim, esmagada, por um peso maior. Nova enxaqueca, nova viagem, para as entranhas!
Era feriado [how convenient...] e estava sozinha em casa.
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Embora tivesse mais com que me ocupar, tal como os ausentes, pude dar-me ao luxo de fazer algumas experiêncas com as ditas interrupções/irrupções no meu quotidiano.
Não tomei analgésico.
Não interrompi a tarefa que estava a fazer.
Não vi tantas manchas fotoeléctricas, enquanto deixei de ver o que fixava.
Durou menos tempo.
No final, fiquei cansada de tanto experimentar e adormeci no sofá.
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Acordei com uma dor enjoativa, mas suportável [e eu suporto mal dores de cabeça, pudera!], que também persiste quando tomo drogas paliativas.
E pensei - Já não é mau! Não tenho que me intoxicar com comprimidos fortíssimos.
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Quando o J. chegou e eu acordei, trocava varanda com corredor e tinha alguma dificuldade em diferenciar os significantes de frigorífico, exaustor e micro-ondas.
[Nada que me fizesse grande falta recordar, já que não fiz o jantar, dada a minha fraca condição... O J., na sua inocência de leigo e crente na nova medicação preventiva, ficou mais triste e decepcionado do que eu.]
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Mas presumo que lá se foram mais um neurónios... Talvez não devesse ter-me posto a dormir.
A sensação que tenho é a que se tem com os miúdos, quando eles batem com a cabeça e nós, adultos, não devemos deixá-los dormir e verificamos se não vomitam, se conseguem interagir normalmente, tudo isto com um saco de gelo em cima do hematoma, com eles a berrar que dói e que está frio!...
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No final da noite doía-me o corpo por ter estado tempo demais deitada e sem grande força para contrariar a modorra. Acabei a apanhar com mais umas ondas do televisor e do vídeo, porque queria voltar a ver um filme que quero que os meus alunos também vejam e anotem.
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E lá se foi mais um 5 de outubro, com honras para a educação, vinda dos célebres e ilustres, na nossa capital. Pois acho bem, se é que estávamos todos a falar do mesmo [que me parece que não...]. Também acho que é sempre fácil e útil falar do palanque!...
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Mas não. Para que não haja mal-entendidos, não os queria ver a eles, nas escolas, a dar no duro [queria vê-los a dar no duro onde devem fazê-lo!]. Só poderia ser um espectáculo deprimente.
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Até porque, duras... duras!, são as cadeiras onde os alunos se sentam, durante blocos de 90 minutos, vários por dia, por vezes, seguidos, com breves intervalos de 10 minutos para atravessar corredores e pavilhões, comer qualquer coisa no bar, ir aos lavabos, com os cacifos do lado oposto [sorte, enquanto os há!] e camionetas para apanhar, ao final do dia, que não esperam por quem se atrasa. Ponto final.
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Depois querem que não se dobrem, que não se curvem, que não de mexam, que não escorreguem para trás e para a frente, que não implorem que deixe sair 5 minutos mais cedo, por favor... e eu, na minha imperturbável falta de convicção, não deixo!... pois não fossem esses neurónios que me fazem cumprir estas regras a fundirem durante as enxaquecas!...
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Andamos todos com uma pedra imensa a prensar-nos as cabeças. Tanta evolução para estarmos, outra vez, tão próximos do pó das estrelas, no pior sentido possível. Sou mais parecida com aquele seixo do que com a minha irmã!
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sábado, 22 de setembro de 2007

À distância... em 2007


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Ontem, quando me despedi dos encarregados de educação, na escuridão de uma sexta-feira, ao cair das 21:00 horas, lembrei-me desta foto em que ainda não teria 1 ano e meio, pouco tempo depois de a minha irmã ter nascido.
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Vivi na casa da escola, em Abrantes, até aos 6 anos de idade. Os meus pais pegaram nos haveres e nos 4 filhos e concorreram os dois para Lisboa, Porto e Coimbra.
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A minha mãe não queria que os filhos sofressem a separação dos pais quando chegasse a hora de tirarem um curso superior. Tinha sido uma experiência dolorosa para ela, certamente.
E ficámos todos juntos no Porto, que passou a ser a minha cidade, mas nunca a amei, como se pode amar um lugar.
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Se me tivessem perguntado se eu queria sair de Abrantes, aos 6 anos, eu teria dito que não.
Se o tivessem feito mais tarde, quando fosse altura de tirar o tal curso superior, eu teria dito que não.
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De facto, os pais que aparecem nas reuniões com os Directores de Turma mostram que querem o melhor para os seus filhos, mesmo quando, raramente, lhes perguntam o que eles querem. Mesmo quando nos dizem que, se for preciso, puxe-lhe as orelhas, ou bata-lhe... [Não estão a ver-me, apesar de ser demasiado alta, mas a pesar 53 quilos, a bater num desgraçado(a) de um(a) aluno(a) de 10º ou 11º ano, não é?]
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Então, ao sair do portão da escola, a relembrar os rostos dos pais e das mães dos meus alunos e alunas, pensei que é quase como ter outra turma, de gente mais velha, que olha para mim como se eu tivesse a solução para problemas tão maiores!... E que acreditam nisso!
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Lembrei-me dos meus pais e das escolhas que eles fizeram por causa dos filhos. Lembrei-me dos meus dois irmãos mais novos deixados ao cuidado e aos caprichos, da irmã mais velha, porque o Porto era uma cidade desconhecida... Lembrei-me da minha mão esquerda, picada vezes sem conta no mesmo ponto, pelo alfinete das fraldas do bébé, para não o picar a ele.
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Lembrei-me de como o ar de tristeza e de febre, desta foto, anunciava a sensação futura de me terem roubado o lugar de uma princezinha [que até vivia numa casa com um jardim rodeado de ameias], para me transformarem numa gata borralheira! E que nunca me perguntaram nada. Se queria, se podia, se era capaz... Porque tinha 6 anos!?
Nos dois meses de mudanças para o Porto tive que crescer o dobro, certamente.
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Estes pais e estas mães... confiam em mim, tal como a minha mãe e o meu pai o fizeram, para os substituir e superar (até), para cuidar dos seus filhos e filhas, enquanto estão na escola.
Ninguém se substitui aos pais. Raramente os filhos aceitam esta inversão de papéis. A minha irmã nunca aceitou e eu percebia! Nomeadamente, quando já têm mais de 15 anos...
Como se adiantasse dizê-lo!... É necessário e a necessidade tem muita força.
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Talvez, por isso, os meus pais não me perguntaram se eu queria, se podia, se era capaz... As marcas do alfinete fizeram prova da minha responsabilidade precoce.
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Que outras opções havia? Que outras opções existem, hoje? Quase nem vemos os filhos. Estão fora de casa o dia todo. Têm treinos à noite e jantam à hora de ir para a cama. Sou eu que almoço com eles na cantina. Eu é que sei o que eles comem... e o que deixam no prato. Mas não é sempre, nem com os mesmos. Não tenho o dom da ubiquidade.
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Quanto ao que aprendem nas disciplinas do currículo e ao que se lhes ensina, para já, não pareceu grande preocupação.
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Se simpatizei com eles? Claro que simpatizei. Se os entendo? Entendo.
Mas é mais uma turma, no meu horário de trabalho, para a qual terei que preparar outros materiais e definir outras estratégias de interacção.
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Numa semana, conheci centenas de pessoas diferentes.
Certo é, que não me foram, nem são indiferentes. E disso, eu já tinha saudades.
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quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Porque nem tudo foi prosaico!...



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A "obra" no corredor e outas "obras" interiores (a meu cargo) foram interrompidas para irmos à inauguração da Bienal de Cerveira.
Outas obras relevantes se impunham!
Nomeadamente, o artista convidado e autor desta instalação, que se expõe na foto (ainda na fase de montagem, em finais de Julho), convinha que estivesse presente.
Vale a pena ir, não só por causa do Deambulatório, esculturas em cerâmica pendentes e com movimento pendular, mas porque há jovens artistas interessantes, como deve ser (e outros não, como também é costume...). [Há muito mais coisas, mas eu não sou o arauto da Bienal de Cerveira, convenhamos.]
Embora não tenha conseguido ver tudo, como é típico nas inaugurações, com os encontros e desencontros e etc..., consegui entrar na câmara onde está a autêntica e genuína Ribeira Negra do Júlio Resende. Poucas palavras haveria a acrescentar, a não ser "vão ver". No entanto, as telas parecem ter sido muito mal guardadas, pelos seus (in) fiéis depositários. Sofreram os estragos da humidade, mais do que do tempo!...
Mas não lhe retiram a magnitude da ribeira negra. [Porque é que estas coisas acontecem neste país? É embaraçoso... pelo menos, eu sinto-me mal!]
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Foto do "Deambulatório" instalação de esculturas cerâmicas de João Carqueijeiro

terça-feira, 31 de julho de 2007

Árvores cobertas de líquen(es), enganadoramente coloridos...



Líquen – associação simbiótica de fungos com algas clorofíceas ou esquizóticas, apêndice dos fungos. (vd. Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 6ª Edição)
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Esta árvore enfeitada de líquen(es), incautamente colorida por parasitas, podia ser eu.
É!... Podia ser eu…
Tal como ela, parece que me ofereci à parasitagem, olhando-me ao espelho sem desagrado, pelos vistos.
[Mais ainda: vergonhosamente inocente.]


Dez anos depois, olho-me com outros olhos, nos mesmos espelhos e cheiro a bolor…
Debaixo do colorido dos fungos, fui carcomida pelos outros, sem o menor pudor.

Amanhã é o dia em que tenciono limpar estes fungos e deixar respirar quem sou, se é que ainda sou. Ou…, apenas ver no que me tornei, despida da invasão dos parasitas.
[Vergonhosamente incauta.]
É que, mesmo sem uma intenção formalizada, ou deliberada... de boas intenções estaria o Inferno cheio (se o houvesse)!
Por isso, amanhã é o último dia desta árvore coberta de líquen(es), enganadoramente coloridos.
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Nota: salvaguardo as devidas excepções, que não preciso de identificar, por serem as excepções!


domingo, 29 de julho de 2007

Saudades de um baloiço verde e do meu avô...

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Quero o baloiço
da latada verde escura.
Vou esquecer
que o cimento a invadiu
o baloiço enferrujou
e que os meus olhos
estão cada vez
mais pequenos.

No tempo do baloiço
as uvas verdes
eram doces
os vasos eram maiores
os patins voavam
o avô mandava mais
e eu cabia no baloiço!

Agora, o avô dura
nas tardes doentes,
deitado em sofás
de plástico…
Já não diz nada.
As fotos coloridas
não existem
ou estão cinzentas.


04.Jan.1980
[Do verde, só as palavras têm a cor da memória: de um baloiço, dos pinheiros da infância e da saudade de um avô, que perdi…]

domingo, 10 de junho de 2007

Superfície ou Fundo - Cara ou Coroa?




É que nem a moeda tem dois lados, não é?
É uma espécie de cilindro achatado, uma rodela de metais (que nem valem o que ela diz valerem), antes fosse um chocolate disfarçado, daqueles que comia na infância.
A ideia de superfície parece ser uma abstracção, apesar de dar muito jeito aos geómetras e afins. Mas no fundo, baralha imenso o senso comum.
Introduz inúmeros equívocos no pensamento e no discurso. Põe à prova a paciência de muitos humanos, em variadas situações do quotidiano, nomeadamente, naquelas que implicam coexistência, colaboração e outras palavras com idêntica regra de formação gramatical.
Não nego, de forma assertiva, a sua existência, pois acho que sim... que devem existir montanhas de verdades, já que tantos as reclamam, universais e para si.
Lembro-me do que diziam da minha avó, quando comentavam as célebres aparições do meu trisavô, depois de morto e enterrado. Contava-se o barulho opaco da bengala do velho H.V. pelas ruas escuras da noite rural.
Diziam que ela respondia, acusando-a de descrença e cinismo, que era uma pena que tais aparições sonoras acontecessem com tantos, menos com ela... pois tinha assuntos importantes para conversar com ele e tantos conselhos para lhe pedir. Seria boa ideia plantar milho naquela parcela, ou na outra, da propriedade mais acima?
Pois eu, quanto a verdades, estou um bocado como diziam da minha avó - nunca me cruzei com nenhuma. Ao contrário da minha avó, não tenho grandes planos para o caso de que tal venha a

acontecer.