sábado, 10 de novembro de 2007

Aos meus irmãos e à nossa infância



A velha e o ladrão.Era uma vez uma velha que vivia sozinha, numa casa um pouco afastada do povoado.
Numa noite escura como breu, onde não se via um palmo à frente do nariz, a velha desceu as escadas de pedra, geladas pela aragem fria da noite, com o balde da comida para os porcos. Olhou à volta e pensou alto:
- Bela noite para ladrões.
De repente, saltou-lhe à frente um estranho vulto negro.
- À porta os tens, velha!
A pobre senhora tremeu dos pés à cabeça. Por pouco, não deixava cair ao chão o balde da lavagem. Todavia, habituada à solidão e aos perigos que esta acarreta, encheu-se de coragem e tentou pensar, rapidamente, no que poderia fazer para dar a volta à situação.
- Ora, meu caro senhor – Disse muito serena pousando o balde – qual ladrão, qual carapuça. O senhor é um pobre desgraçado que se perdeu nesta noite escura e sem luar e teve a sorte de vir parar à minha humilde casa, onde lhe vou preparar um belo jantar. Estou para aqui tão sozinha, que me vai saber muito bem a sua companhia.
O ladrão ficou meio atrapalhado, não sabia bem o que fazer – se saltar para cima da velha e pô-la a dormir com um safanão, ou esperar que ela entrasse para lhe roubar os parcos bens. Pensou um pouco e achou que ficaria a lucrar se primeiro jantasse e depois a roubasse. Vendo bem, já há uns dias que não comia uma refeição caseira e, se ela fazia questão, porque não aproveitar.
Lá subiram os velhos degraus de pedra, como se de dois amigos se tratasse e entraram na casa humilde que cheirava a enchidos e a compota de maçã com canela.
A velha mandou-o sentar, observando-o de esguelha e pensando como poderia livrar-se daquele homem que não podia ter um ar mais malvado do que aquele que tinha: sujo, mal barbeado, olhos de cão raivoso, cabelo negro desgrenhado, unhas pretas e compridas, quais garras prontas a atacar. Mas a velha já tinha vivido muito, passara por grandes privações, era uma mulher obstinada e, definitivamente, não lhe estava a apetecer morrer naquele dia.
Ofereceu-lhe sopa de couves, cheirosa e quente, sardinhas acabadas de fritar em ovo e farinha, sobre fatias de broa fresca, bem regadas com o vinho mais forte que conseguiu ir buscar à adega, com os olhos pequenos e desconfiados do ladrão a seguirem-lhe todos os passos.
Mas fez de conta que não reparava e tratou de nunca lhe deixar o copo vazio.
Já bem bebido e comido, a velha resolveu começar a executar a segunda parte do seu plano.
- Ó meu pobre senhor, o que a vida lhe tem feito! Magro como um cão, sem lar, sem família… deve sofrer muito…
O homem, bem satisfeito, já descontraído e mais sossegado, porque a velha, para além de nem suspeitar das suas intenções, ainda lhe dava tempo para descansar de tão apetitosa refeição, foi acenando, que sim, com a cabeça e encostou-se na cadeira.
- Olhe – continuou ela – quem sofreu e sofreu muito, foi o meu pobre pai. Lembro-me como se fosse hoje. Em novo, era um touro de saúde e vigor. Não havia pedra que não conseguisse levantar… não havia potro que não conseguisse domar… e dava-nos cada sova que nos deixava sem sentidos. Mas a justiça de Deus não tarda. Um dia, vá de ficar entrevado numa cama, à conta de uma ferida que nunca mais sarou.
O ladrão estava encantado. Já não se lembrava de lhe contarem histórias desde o tempo em que a sua mãe era viva. E há quanto tempo isso acontecera. Deixou-se ficar mais um pouco e recostou-se ainda mais na cadeira. Estava a sentir uma sonolência agradável e reparadora. Mas a velha continuou:
- Sofreu muito o meu falecido pai. Desde essa altura, nunca mais teve sossego. E quando lhe fazíamos os curativos? Berrava que nem um doido. Vou-lhe contar como era – e, de repente, a velha abriu a boca e desatou a gritar com quantas forças tinha – Aqui d’ El Rei que me estão a matar! Socorro que me matam! Aqui del’Rei que me matam!
O ladrão, que até ali, estava embevecido com o simpático e inesperado serão, deu um salto na cadeira.
- Cale-se mulher! A aldeia não é assim tão longe e hão-de pensar que alguém a quer matar a si!
A velha, cujo objectivo parecia estar prestes a ser desmacarado, retorquiu com um sorriso muito calmo:
- Esteja descansado, meu caro senhor, na aldeia todos conhecem a história do meu pobre pai. Já estão habituados a ouvir-me contá-la a quem me visita. Não vão ficar nada admirados. Não seria a um salteador ou malfeitor que eu me poria a contá-la num serão. Mas, como eu ia a dizer, o meu pai sofreu demais. Apesar de ter sido duro com os filhos, a mulher e toda a gente, não merecia tal agonia.
E a velha continuou em altos berros a descrever o sofrimento do pai, cada vez mais alto e com mais realismo. Por seu lado, o ladrão não se sentia nada descansado e não ficou surpreendido quando se ouviu bater à porta um vizinho preocupado.
- Ó tia Joaquina, a senhora está bem?
- Não se preocupe – disse a velha ao ladrão, tentando disfarçar o nervosismo – Eu já lá vou explicar-lhes que tenho uma visita em casa e estou a contar a história do meu pobre pai.
O ladrão ficou de atalaia, sem deixar de a vigiar, com a mão na faca que tinha presa na liga, não fosse dar-se o caso de precisar.
A velha abriu a porta, piscou o olho ao vizinho e disse, com o ar mais tranquilo do mundo:
- És tu, ó Ramiro. É que estou com uma visita, um santo homem, que não conhecia a história da morte do meu pobre pai. Sabes? Aquela agonia horrível que acordava toda a aldeia…
É claro que a velha tinha inventado a história do pai, a chaga que nunca se curou e os gritos de loucura. O pai da velha tinha morrido, era ela uma criança, depois de uma noite de bebedeira em que escorregou de uma ravina e partiu o pescoço. Todos se lembravam muito bem disso. Na manhã seguinte, homens, mulheres e crianças percorreram o caminho de volta a casa à procura do seu rastro, quando deram com ele no fundo do penhasco.
O tio Ramiro percebeu tudo. Rapidamente, assomou à entrada da porta e cumprimentou o intruso, cordialmente.
- Então vá, tia Joaquina, continue lá com as suas memórias e uma santa noite para os dois.
Lá saiu, pondo o chapéu na cabeça.
O ladrão tirou a mão da faca, mais descansado, ainda um pouco nervoso, mas dispôs-se a continuar a ouvir a velha que já lhe servia mais vinho, como se nada fosse.
- Bons vizinhos que eu tenho. Pena que não estejam mais perto. Percebe agora porque me dá tanta alegria tê-lo aqui e poder contar-lhe estas histórias do meu passado de velha cansada…
Lá continuou a descrever a doença do pai… como um homem forte e arrogante acabou um fraco cheio de dores e sofrimento.
.
Não passaram mais de dez minutos, quando todos os homens da aldeia, armados de varapaus e enxadas irromperam de surpresa pela porta da frente e das traseiras e imobilizaram o ladrão. Tão surpreendido ficou que pouco ou nada se debateu.
- O raio da velha! – Dizia ele – O raio da velha!
Finalmente, a tia Joaquina sentou-se numa cadeira e sentiu os joelhos a tremer e o coração a bater no pescoço.
- Então? – Disse o tio Ramiro – Não é agora que se vai abaixo, depois de ter sido tão corajosa. Aquela do seu falecido pai não lembra ao diabo! C’um raio. Vossemecê, é danada!
Enquanto levavam o ladrão bem preso, todos se riam e admiravam a coragem da velha.
A tia Joaquina rezava um pai nosso e bebia o resto do vinho forte que servira ao ladrão.
- Acho que estou a precisar! – Pensou em voz alta.
.

Adaptado por Um Ar De, a partir de um Conto Popular, contado pela nossa mãe
Silvares, Fundão

.
.
.
.
 Foto retirada da net
.
.