domingo, 2 de março de 2014

Quando acorda...



Quando acorda, o levantar mede forças com o cansaço. Por vezes ganha. Ainda se lembra dos sonhos, quase sempre. No entanto, não são os sonhos-epopeia em que voava sobre as casas e os montes, ou passeava com vestidos compridos de flores azuis minúsculas, por entre alamedas de árvores gigantes, ou à beira-mar. O voo é cada vez mais raro.

Agora, os sonhos perpetuam banalidades dos dias que passam, com pequenos picos de heroicidade de somenos importância, como se justificassem o facto incontestável de viver, um dia de cada vez.

O último sonho tinha lugar numa sala de aula ampla e pintada de branco, sem as manchas de bolor e os ressoados do costume. Os alunos eram perspicazes e levantavam questões demasiado pertinentes, que a levaram, de imediato, a concluir a certeza do sonho e do seu término, a contragosto.

Quando acorda, implica com o cabelo. Com o corpo, é mais depois do banho. Não há Pilates que o salve, que o revitalize, que o devolva!

Arrogante, não se congratula com a visão dos dois seios e dos mamilos no sítio esperado. Outras mulheres, que conhece, não recebem idêntico reflexo matinal.

Olha para a balança, mas sabe que não precisa de testá-la. O peso desceu consideravelmente com o final do tédio das últimas férias de verão, acompanhado da consciência súbita da inevitável repetição dos anos letivos futuros.

Pensa cada vez mais na palavra i n e v i t á v e l, com as respetivas contextualizações e aplicações quotidianas. E pensa que é capaz de ser isto o envelhecer, mesmo sem precisar de pintar o cabelo, mesmo sem ter grandes rugas no rosto. Apenas no pescoço (que não engana).

Treina expressões faciais ao espelho, enquanto seca os caracóis frisados no cabeleireiro, que teimam em jamais obedecer à ondulação desejada. Treina as expressões que julga serem as mais comuns, depois ensaia duas ou três poses para eventuais e raras fotografias. E despede-se.


Depois de vestida, sempre com roupa a mais, sem grande vontade, desce ao andar de baixo, para perceber que se esqueceu dos óculos, ou do relógio no andar de cima e voltar a subir as escadas com a agilidade falsa que faz de conta que ainda tem.

A agenda está sempre em atraso. Tudo parece demorar eternidades. Nunca foi perfecionista, embora lhe encontrem essa qualidade omissa. Por isso, não se atreve a pensar que está a ficar mais exigente consigo própria.

Entretanto, o corpo diz-lhe, sem piedade, que está cheia de sono e prepara outro café com leite de arroz. Acompanha-o com um cigarro fumado debaixo do exaustor. Dizem-lhe que vai morrer disso. Não liga e fuma outro. Miligramas: nicotina 0,1, monóxido de carbono 1, alcatrão 1. Nos mínimos.

Não deixará de fumar, que isso sabe. Substancialmente, nada de desagradável deixaria de o ser. Precisa da paragem quase meditativa do gesto, que corta o tédio fundamental dos dias.

Acordada, porque é acordada que faz toda a diferença, supostamente, continua a sonhar que nunca chegou a casar-se [duas vezes e a ter um filho] e que ainda irá viver em África. África Negra. Onde? pouco importa, porque embora não fale nenhum dialeto, pensa e escreve fluentemente em inglês e fala bem francês.

[Aí, sim. Correria com o vestido de flores azuis minúsculas, até aos pés, cortado acima da cintura: sem alamedas e sem destino, com uma dúzia de autóctones ao lado dela. Não atrás. Nunca atrás.]


Fev.2014