Quando acorda, o levantar mede forças com o cansaço. Por
vezes ganha. Ainda se lembra dos sonhos, quase sempre. No entanto, não são os
sonhos-epopeia em que voava sobre as casas e os montes, ou passeava com
vestidos compridos de flores azuis minúsculas, por entre alamedas de árvores
gigantes, ou à beira-mar. O voo é cada vez mais raro.
Agora, os sonhos perpetuam banalidades dos dias que passam,
com pequenos picos de heroicidade de somenos importância, como se justificassem
o facto incontestável de viver, um dia de cada vez.
O último sonho tinha lugar numa sala de aula ampla e pintada
de branco, sem as manchas de bolor e os ressoados do costume. Os alunos eram
perspicazes e levantavam questões demasiado pertinentes, que a levaram, de
imediato, a concluir a certeza do sonho e do seu término, a contragosto.
Quando acorda, implica com o cabelo. Com o corpo, é mais
depois do banho. Não há Pilates que o
salve, que o revitalize, que o devolva!
Arrogante, não se congratula com a visão dos dois seios e
dos mamilos no sítio esperado. Outras mulheres, que conhece, não recebem idêntico
reflexo matinal.
Olha para a balança, mas sabe que não precisa de testá-la. O
peso desceu consideravelmente com o final do tédio das últimas férias de verão,
acompanhado da consciência súbita da inevitável repetição dos anos letivos
futuros.
Pensa cada vez mais na palavra i n e v i t á v e l, com as respetivas contextualizações e aplicações
quotidianas. E pensa que é capaz de ser isto o envelhecer, mesmo sem precisar
de pintar o cabelo, mesmo sem ter grandes rugas no rosto. Apenas no pescoço
(que não engana).
Treina expressões faciais ao espelho, enquanto seca os
caracóis frisados no cabeleireiro, que teimam em jamais obedecer à ondulação
desejada. Treina as expressões que julga serem as mais comuns, depois ensaia
duas ou três poses para eventuais e raras fotografias. E despede-se.
Depois de vestida, sempre com roupa a mais, sem grande vontade,
desce ao andar de baixo, para perceber que se esqueceu dos óculos, ou do
relógio no andar de cima e voltar a subir as escadas com a agilidade falsa que
faz de conta que ainda tem.
A agenda está sempre em atraso. Tudo parece demorar
eternidades. Nunca foi perfecionista, embora lhe encontrem essa qualidade
omissa. Por isso, não se atreve a pensar que está a ficar mais exigente consigo
própria.
Entretanto, o corpo diz-lhe, sem piedade, que está cheia de
sono e prepara outro café com leite de arroz. Acompanha-o com um cigarro fumado
debaixo do exaustor. Dizem-lhe que vai morrer disso. Não liga e fuma outro.
Miligramas: nicotina 0,1, monóxido de carbono 1, alcatrão 1. Nos mínimos.
Não deixará de fumar, que isso sabe. Substancialmente, nada
de desagradável deixaria de o ser. Precisa da paragem quase meditativa do
gesto, que corta o tédio fundamental dos dias.
Acordada, porque é acordada que faz toda a diferença,
supostamente, continua a sonhar que nunca chegou a casar-se [duas vezes e a ter
um filho] e que ainda irá viver em África. África Negra. Onde? pouco importa,
porque embora não fale nenhum dialeto, pensa e escreve fluentemente em inglês e
fala bem francês.
[Aí, sim. Correria com o vestido de flores azuis minúsculas, até
aos pés, cortado acima da cintura: sem alamedas e sem destino, com uma dúzia de
autóctones ao lado dela. Não atrás. Nunca atrás.]
Fev.2014
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