sábado, 13 de setembro de 2008

O meu Trisavô... da genealogia à ficção

Retrato de Afonso Costa
.
.
Quando penso no meu trisavô, à falta de fotografias da época, é este rosto que se perfila perante os meus olhos.
Imagino que não seriam dois homens, fisicamente, muito diferentes. Conta-se que não. E, certo é, que foram amigos.
Também se conta que, o dono deste rosto, foi convidado pelo meu trisavô a visitar o seu “retiro rural”, depois das lutas republicanas e das cumplicidades dos tempos da Carbonária. Uma visita inesquecível, que ficou na memória de todos, até dos que não a viveram, como a minha avó, que não era nascida.
.
.
Pois saberia o Afonso Costa montar a cavalo? Será que o meu trisavô o levou a ver a sua herança rural? Será que chegaram juntos ao ponto mais alto da aldeia e, montado na sua égua branca, apontando-lhe, desinteressado, a vastidão das terras, lhe terá contado as suas desventuras de proprietário, ex revolucionário, convertido à modorra do casamento e da ruralidade [imagino que, com um tom jocoso na voz, para não denunciar o tédio imenso… pior ainda, para não denunciar os olhos húmidos?].
.
.
Ou o Afonso Costa não sabia montar e passearam pela aldeia e suas imediações, em ostentação mais que visível, na travessia do adro da Igreja [o padre enfiado na sacristia a espumar de raiva…].
Pararam para beber um copo de vinho, bem tinto, para comer broa com presunto ou sardinhas secas e fritas, em casa deste e daquele… [o meu trisavô orgulhoso... por mostrar o grande Afonso Costa e seu amigo, de lutas que pertenciam a um passado, que ele sabia, tinha acabado no dia em que ali chegara].
.
.
A minha trisavó teria acolhido a ilustre personalidade, pois que não teve outro remédio! Mas, a benzer-se, de cada vez que ia à cozinha dar indicações sobre o que viria para a mesa.
Recebera-o com tanta educação e esmero, quantos foram os terços que rezou, de cada vez que a deixavam sozinha.
.
.
Depois do episódio da visita do Afonso Costa àquela aldeia, com o rio Zêzere a seus pés, quantas terão sido as confissões e as penitências, bem penosas, que o padre lhe ordenou? Aquelas que a minha trisavó acreditou serem merecidas?
.
.
Depois do regresso do amigo à capital, nas poucas horas que se lhe seguiram, em que pensou o meu trisavô? Revoltou-se, para se conter, depois? Resignou-se, não sem conter os olhos húmidos de tristeza, a que chamou ira e ódio, porque um homem não se comove e, muito menos, chora?
.
.
Talvez tenha sido, precisamente nesse dia, que não voltou pela calçada que o conduzia a casa, inevitavelmente e sempre, mesmo desrespeitando as horas e os hábitos [que, só lhe faltava ter que obedecer ao tempo das obrigações diárias do sino da Igreja!].
Nesse mesmo dia, talvez tenha decidido enveredar pelo caminho enlameado, que havia de o conduzir, tantas vezes mais, à porta desengonçada e velha, daquela que foi a sua amante predilecta [da que ficou conhecida, nos anais da família, como a Gata Gulosa…].
.
.
[Depois… não voltou para casa antes de ser manhã feita. Cavalgou algumas horas pelas sombras dos montes e pelas margens do rio. E pensou em Lisboa… e deixou de pensar, porque lhe doía a cabeça e tinha um nó no estômago, apertado demais.]
.
.
Foto de Afonso Costa, In Enciclopédia Lello e Irmão,

16 comentários:

  1. Para a trineta...
    beijo de gostei muito do teu texto terno!
    :)

    ResponderEliminar
  2. quase mergulhei num romance de júlio dinis.

    volto para reler,

    é exctamente, aqui como re

    ver :)



    ~

    ResponderEliminar
  3. tenho tantas fotos antigas,

    lindíssimas e graves de pessoas que não conheço, mas reconheço,

    é dos meus maiores fascínios, olhar as expressões e inventar histórias,

    continuar, mudar.

    ( belo e imparável exercício...




    beijo :)

    ResponderEliminar
  4. Olá! Desculpe a invasão, aliás, muito boa, porque gostei do seu blog! Um belo post! Por vezes fico também, imaginando como seriam as fisionomias dos antepassados e como seriam as relações familiares, daquela época.
    Gostaria de lhe pedir um favor; estive no blog "libertas" e não consegui comentar. Por favor poderia dizer por lá que tentei, várias vezes, retribuir a visita. O problema: quando vou sem logar, consigo entrar na página principal e na dos comentários. Mas não comenta sem logar. E quando fico logada, a página principal não abre, porque trava tudo.
    Mais uma vez peço desculpas. Obrigada! Bom fim de semana! Beijos

    ResponderEliminar
  5. há muito afecto no teu texto, muito bem escrito.
    Escavar as raízes...indo ao trisavô...e à trisavó...é um belo exercício psicológico...e também uma bússola existencial no mar das memórias...nota-se uma ponta de orgulho na admiração que deixas transparecer pelos trisavós...o que não é para menos...

    Bom fim de semana...

    ResponderEliminar
  6. Olá! Vim lhe agradecer a gentileza e dizer que agora consegui comentar.
    Obrigada, viu?

    ResponderEliminar
  7. Gostei imenso desta leitura. De tão bem escrita e de tudo quanto a perpassa. Nas linhas escritas e em todas as outras que se pressentem.
    Beijos a galope

    ResponderEliminar
  8. Este foi um dos grandes impulsores da implantação da Republica em Portugal e fizeste bem em trazê-lo aqui. assim como ao teu avô. O Dr. Afonso Costa sentir-se-ia satisfeito se pudesse ler os teus comentários ao pé do texto, são uma delicia para os sentidos.

    Um grande abraço

    ResponderEliminar
  9. E deixar a imaginação correr assim, à desfilada, como um cavalo de crinas ao vento, recriando as memórias e dando-lhes actualidade.
    Soube-me bem ler-te!

    ResponderEliminar
  10. foi...agora mesmo, o comentário.

    ( és um amor, muito obrigada, pelo beijo que deixaste e que aceito de braços abertos :)

    [ é um dia inequivocamente deprimente antes de chegar,

    depois é só um dia, verei como
    o faço correr!


    beijo a ti


    ~

    ResponderEliminar
  11. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  12. "Grandes "introduções" encontrei."

    e se eu te disser que foi o CV que epresentei em serralves em 1993 :)

    o director do goethe institute viu-se negro para me dar a volta :)
    manias minhas


    confortam-me os teus escritos. sao tranquilos...

    bjo

    ResponderEliminar
  13. lindo texto.
    Vim conhecer e adorei tudo aqui.
    Tenha uma bela semana.
    Maurizio

    ResponderEliminar
  14. belíssimo retrato. de uma época.

    cuja matriz tem ainda ressurgências.

    um dia conto no blog... rss

    gostei muito.

    ResponderEliminar
  15. Vim espreitar. É quarta feira e ainda não me dasabituei! Mas eu sei, eu sei que este ano tem de ser diferente. Cmo estás?
    beijinhos, muitos

    :)))

    ResponderEliminar