quarta-feira, 21 de maio de 2008

Voos de quartas-feiras distantes…



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.Se alguma vez tive uma sensação próxima do voo, não foi dentro de um avião.
Aquela que mais se lhe assemelhou foi, sem qualquer sombra de dúvida, a experiência do primeiro galope, montada numa égua branca, que nunca mais esquecerei.
A outra sensação de voo, com um friozinho na boca do estômago, foi o nosso primeiro salto. O obstáculo parecia-me intransponível e não foi.
- Não foi, sussurrei-lhe ao ouvido, banhadas [as duas] em suores animais…
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Não sei se montar um cavalo é o mesmo que andar de bicicleta [e nunca se perderá o jeito…]. O que é certo é, que nunca voltei a montar aquela égua, ou outro cavalo qualquer.
Andar de bicicleta, andei. De facto, não perdi o jeito.
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No entanto, não me parecem experiências comparáveis. Ninguém conversa com uma bicicleta [embora, tenha feito a manutenção da minha, quando era uma rapariga a ganhar aos rapazes da rua, em corridas desenfreadas, em que as minhas pernas longas demais eram uma vantagem, sem grande esforço, que me obrigavam a trocar pneus, mudar travões, alinhar a direcção e por aí…].
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Não. Ninguém conquista a confiança e o respeito de uma bicicleta, como se conquista uma égua branca, nervosa e desconfiada, de tanto ser montada por gente que lhe dava instruções descabidas e contraditórias, muito antes de eu chegar…
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Em Idanha-a-Nova, na quinta do Marquês da Graciosa, fui encontrar um treinador do Porto, que me fez passar por uma iniciação única.
Pouco treinei no picadeiro. Passei, quase de imediato, para o meio dos campos e dos montes. E, coisa mais única, fez questão de me ensinar a tratar de cavalos. [Mal ele sabia, que acabou por me ensinar muito mais… aprendi a cuidar de todos, a saber o nome de cada pequeno artefacto, a escová-los, a ajudar a vaciná-los, a limpar a estrebaria, a ver recém-nascidos… a perder o medo e a ganhar a confiança…]
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Sou alérgica à maior parte do pêlo dos animais, até às penas de certas aves. Felizmente, não aconteceu com os cavalos.
Depois das aulas, durante toda a manhã, chegava de Alcains a Castelo Branco, vestia-me e lá íamos [filho e eu], rumo a Idanha-a-Nova.
Tardes inesquecíveis de outras quartas-feiras, de cheiro a cavalo e de posições de voo conseguidas!... [Não sem algumas queixas do meu rapaz, a quem os cavalos, em primeiro lugar, cheiravam a cavalo e cumpriam mal a função de meio de transporte…]
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Eram, mesmo, posições de voo…
Era, mesmo, a sensação de voar…
Era, mesmo, o animal e eu, feitos Um.
Eram duas criaturas, que aprenderam a confiar uma na outra, ainda que tivesse levado o seu tempo [quando o tempo não encolhia à medida que passava e todos os momentos pareciam eternos…].
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Regressada ao Porto, com saudades de uma égua branca, visitei todos os sítios onde podia voltar a encontrar outras éguas, outros cavalos… Impossível voar naqueles lugares estreitos e apertados. Impossível cuidar de outra égua…
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[Sinto-me tão, necessariamente, urbana… mas sinto-me tão, ancestralmente, ligada à imensidão do planalto de Castelo Branco, às profundezas da Cova da Beira, aos rios e riachos, por onde o meu trisavô republicano e, ostensivamente anti-clerical, deverá ter cavalgado, quem sabe, montado numa outra égua branca, com quem conversaria, também…]
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de Patricia Cohen, Foto retirada do site www.olhares.com

9 comentários:

  1. Que giro! Não te sabia "cavaleira". A minha única experiência nessa área remonta à minha meninice, na Beira Alta, montada num burro... a tua égua que me perdoe a comparação...

    Beijinho

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  2. linda um ar de:
    (espreitadela furtiva das quartas feiras... só para conferir e mandar um beijinho. Mais tarde leio com calma.) Em relação ao link... CLARO. E para os teus alunos ainda arranjo mais. Só não coloquei no post porque acho que tirava o merecido protagonismo a esta revisitação feliz da "desassossegante" Guernica

    Beijos de quarta feira
    :)

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  3. Ora, querida GP,

    Não tenho saudades de ser "cavaleira"... e, também montei o elefante do Jardim Zoológico de Lisboa, andei em carros de bois e nos seus dorsos e nos dorsos de todos os burros que encontrei... para grande preocupação da minha avó.

    Cheguei a quase morrer, na serra do Gerês, já a comer a crina de um dos típicos e nervosos cavalos selvagens, assim, em pêlo... porque um pastor malicioso lhe bateu nos flancos e parámos, quando se cansou de tanto insistir em deixar-me cair sem conseguir.
    Não levei a mal.

    Saudades... tenho eu, daquela égua que me fez voar e que nunca insistiu em me fazer cair, como a vi fazer a tantos outros...

    Esta lembrança é para ela...

    [Beijo...]

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  4. também tive uma égua branca."in illo tempore". rss

    e algumas "estórias" com ela. que um dia talvez conte.

    mas picadeiro mesmo apenas no Esquadrão de Cavalaria em Castelo Branco! nos idos de 60, imagina!... rss

    (grato pelos teus comentários, sempre certeiros. e tão gratificantes!...)

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  5. Deve ser de fato uma sensação única (que não conheço), a simbiose cavalo/cavaleiro, e o poder de levantar vôo...
    E as raízes, essas, nunca se esquecem.

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  6. Acabei de ler o texto... acabei de ler o teu texto bonito. Acabei de ler a história bonita que contaste tão bem no teu texto bonito. Eu tive pena que o teu texto bonito que conta a tua história bonita tivesse acabado.
    Um beijo

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  7. Depois de 3 dias a "voar" [rasteiro] por outras paragens...chego aqui para espreitar a quarta-feira e deparo-me com tão interessantes voos. Voos mesmo!
    Fizeste-me lembrar a Andorinha [tinha mesmo nome de pássaro, ainda que pequenino], a única égua onde montei sem medo, tão meiga era. Como lhe assentava bem o nome!Não eram grandes voos,nunca galopei em cima dela, limitei-me ao trote, mas eram voos...de liberdade pelos campos fora. Que saudades!
    Obrigada por teres feito com que me lembrasse desta memória tão boa.


    Beijo grande, a voar na Andorinha.

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  8. Querida Mdsol,

    Era, apenas, uma evocação de outras quartas-feiras... porque, hoje, também é quarta-feira!
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    Recordação de um "tempo" em que tudo parecia possível... um "presente" dilatado no presente. Uma outra forma de viver o dia-a-dia... outras paisagens e outras companhias, distantes.
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    Recordação, também, de um trisavô que não conheci, mas de quem muito ouvi contar e a quem muito me assemelho, pelo que parece...
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    Recordação de uma égua branca, com quem ainda sonho, numa intimidade estranha e única e irrepetível...
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    Pois, diz-se, que o meu trisavô montava uma égua branca. Por coincidência, sem ser ouvida ou chamada, foi uma égua branca que me foi destinada [nervosa e alta... que só eu montava, sem ajuda, de uma assentada].
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    Obrigada pela partilha do link. Já consta! Espero que a rapaziada goste e entenda, com uma pequena ajuda...
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    [Beijo desta quarta-feira]

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  9. Querida Tinta_Azul,

    Mais lá do que cá, mais ali do que aqui... qualquer dia terão que alugar uns apartamentos para quem tanto permanece na outra cidade.
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    Ainda bem que te lembraste da Andorinha...
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    Também me lembrei da égua que o meu filho montava, mansa, lenta... mas confiável e terna.
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    Ficou pachorrenta e triste, porque perdeu a primeira cria, ao nascer. Nunca mais galopou, nunca mais teve outras crias... mas deixava que as "nossas" [neste caso, a minha] a montassem, sem temor, no seu dorso abatido...
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    Tinha um pêlo castanho, cor de mel, a condizer com a tristeza dos olhos...
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    [Beijo grande, de saudade]

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