sábado, 5 de abril de 2008

Velhos jardins em fins de tarde mornos



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Optei por não sair do carro. Desisti de fazer as compras da semana, sempre que posso passar ao lado [já não sou eu que controlo o que existe dentro das prateleiras da arca frigorífica e outros locais afins, vendo bem].
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Enquanto esperava, o jardim ali estava, mesmo à minha frente, antigo e sólido, quase eterno.
Aproveitava para não sentir o cansaço do corpo [e ansiosa para não ser desafiada para um passeio a pé e ter que dizer – não…], ao mesmo tempo que ensaiava o pensamento sobre as inúmeras possibilidades de fazer outras coisas em vez de dar aulas [francamente, pouco convencida da viabilidade da minha futura e eventual desistência].
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Um velho jardim com velhas senhoras revelou-se, subitamente, apesar da minha modorra.
Conversavam e conversavam e conversavam… ao longe.
A velha senhora, de lenço amarelo na cabeça [gostei da cor ousada do adereço…], olhou para mim, encolhida que estava, dentro do carro.
Nada comentou. Nenhuma das outras olhou para mim, pelo menos.
O que há para comentar sobre uma figura parada e sentada, dentro de mais um dos carros, estacionados de costas para o supermercado?
Senti-me transparente. Senti-me insignificante. [Eu não era um outro significativo, para variar e não desgostei da sensação.]Despertou o meu interesse.
Peguei na máquina fotográfica, activei o zoom e tirei a primeira fotografia do grupo. Tirei outras.
[Não voltaram a olhar para mim, obviamente…]
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.Só depois, percebi que não estavam sozinhas…
Os velhos senhores estavam sentados num outro banco, retirados, mais à esquerda.
[Dois para três. Três para dois.]Os velhos senhores quase não falavam. Não estavam sozinhos. Um homem mais jovem sentara-se, na parte de trás do banco, a olhar o jardim.
Talvez não quisessem falar perto do desconhecido. Talvez não tivessem nada para dizer. Talvez ouvissem os murmúrios das conversas das velhas senhoras [talvez cansados de as ouvirem… talvez o contrário…]. Talvez estivessem como eu a pensar na vida, sentados num banco de jardim, num fim de tarde cansado [ou, apenas, cansados e a descansarem].
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Curiosamente, o grupo de três mais dois sentara-se de costas para o jardim…
As árvores floridas, o verde oxigenado seria bem menos interessante do que o movimento dos carros e dos transeuntes [num fim de tarde cansado de véspera de segunda-feira]?
Os dias da semana e dos meses e dos anos serão, assim, tão iguais uns aos outros?
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Haverá uma pausa na rotina para visitarem o posto dos CTT e recolherem o cheque da pensão de reforma…
Haverá uma ida ao Centro de Saúde para levantarem as receitas médicas… Talvez uma consulta de rotina, com uma médica indiferente e asséptica, como a minha…
Haverá uma visita à farmácia, para aviar a receita [e ficar a dever alguns medicamentos que entram em conta corrente…] e um encontro fortuito com velhos conhecidos… Depois, virá a conversa amigável com a farmacêutica, que se oferece para lhes medir a tensão e anotar os valores no talão amarrotado do histórico das tensões arteriais… Aí, queixam-se do que não tiveram oportunidade de contar à médica. Outros clientes começam a manifestar impaciência [a farmacêutica chama mais funcionários ao balcão]. Certifica-se se estão a cumprir as instruções da medicação… e trata-os pelo nome próprio, com meiguice, despede-se…- Voltem quando precisarem!...
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Alguns velhos senhores e velhas senhoras não voltam, tão cedo. Têm vergonha dos montantes que se acumulam nas suas contas correntes. Outros foram internados e os vizinhos comentam.
[Naquela farmácia os produtos de beleza são dos mais caros das redondezas. Paciência. Primeiro a saúde. Também não deixam de se vender e uma mão lava a outra!... ]
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.Acrescente-se que a farmacêutica tem uma cara lindíssima e uma voz alegre. É jovem e ainda parece mais nova, porque é alta e se veste com cores juvenis por baixo da bata branca semi-aberta. Tem sempre uma pequena oferta, nas quadras festivas, para presentear os clientes e nunca diz os meus doentes!
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[Tenho saudades dela e das afinidades cinéfilas que partilhávamos, para além de tudo em que concordávamos, sem ter que utilizar palavras inúteis. Agora, que vivo noutra cidade e não frequento aquela zona de Campanhã, a minha farmácia é mais uma entre tantas...]
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dedicado a uma farmacêutica jovem e verdadeiramente solidária, Fotos de um fim de tarde cansado

4 comentários:

  1. Este texto generoso (entre outras coisas) ainda me tocou mais por causa da jovem farmacêutica. Imagino-a cheia de sol e sem problemas de azul e a merecer tudo porque dá muito aos outros... eu tenho uma jovem sobrinha farmacêutica a estagiar este ano lectivo... vou-lhe passar o texto... eventualmente ensina-lhe mais sobre a profissão do que uma dúzia de anotações da orientadora de Estágio...
    um beijo

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  2. A nossa querida farmaceutica. Até eu tenho ido lá menos e tenho saudades dela também. Sempre apreciei o modo como trata as pessoas com particular atenção pelos velhos, de quem sabe o nome e de alguns até a data dos aniversários.
    Descreveste-a muito bem. É bonita e muito airosa. Não duvido o quanto ela faz bem à saúde de quem vai aquela farmácia. Até a mim.
    Quando fores almoçar comigo, depois vamos à farmácia. Afinal tenho lá uma continha (pequenina) para pagar! :))))

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  3. Também deixei as compras por fazer... Amanhã terei de me levantar mais cedo. Somos 12 a lanchar...
    Gostei do teu dia. E como imaginaste bem a vida daquelas pessoas menos novas que passam os dias de sol no jardim, sozinhas ou acompanhadas.

    Beijinho e bom domingo

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  4. admiro a qualidade da tua escrita. sempre envolvente.

    excelente na descrição de pormenores. que falando de outras "personas" é de ti que "falam"...

    gostei muito.

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